"A solidez que se desmancha" ou "em busca da identidade perdida"

Em São Paulo, dorme-se em uma cidade e acorda-se em outra. O ritmo "construção-desconstrução-reconstrução" é tão permanente que pode-se dizer que São Paulo antecipou em décadas o espírito desses tempos de hoje: o esquecimento da História, tão necessário para o mundo dito pós-moderno quanto o ar o é para o ser humano (já disse noutro post que não acredito nessa cretinice de fim da história - e que me recuso a esquecer, só pelo gostinho de lembrar depois).
Não foi sem certo ranço que revisitei São Paulo dia desses com mais calma e percebi o esforço tirânico das megacorporações por apagar o passado, expresso e registrado em arquiteturas do século passado que não tiveram reconhecimento histórico. A arquitetura é o livro da memória urbana, onde são registradas tendências de uma época, pensamentos, preconceitos até. O que dizer do desaparecimento dos prédios das indústrias Matarazzo? Uma única, escassa e solitária chaminé de um desses prédios continua de pé. O restante de uma dessas construções foi apagado pelo tempo. Em seu lugar, novíssimo complexo de prédios foi erguido, dando a idéia da velha megalópole que se recusa a envelhecer.

Velhas janelas assistem e deixam assistir à descontrução de um patrimônio histórico. É a memória que se perde, sem que percebam para que ela serve. Ou pior:são convencidos de que ela não serve para nada.

Em outra parte, a velha São Paulo permanece. Prédios que outrora representaram a alvorada de uma classe emergente (os então novos ricos, os imigrantes) e a alma dos Quinhentões estão engolidos por toneladas de sujeira e armações de concreto a segurar pontes e passarelas. Cortiços convivem e resistem, como trincheiras, às investidas desse espírito paulistano: "construir-desconstruir-reconstruir". Lembra até o amado Juventus e sua torcida tão italiana, que carrega em seus quadros os velhos anarquistas de outrora.
Aliás, Futebol, História, Política e Arquitetura tem muito mais em comum do que se imagina: será que já pensamos no motivo de o Pacaembu (Estádio Paulo Machado de Carvalho) ter uma arquitetura tão diferente do comum dos estádios? A arquitetura desse estádio (para mim o mais belo do Brasil) tem os traços característicos de regimes totalitários da Europa da década de 40, algo não tão simples de justificar apenas se apontando as tendências arquitetônicas da época. É uma arquitetura característica dos regimes Fascistas, e expressa claramente isso: pontiaguda, reta, monumental e expressiva, violentamente expressiva. O Pacaembu lembra o Estádio Olímpico de Berlim, construído para celebrar a loucura de seu Fuehrer. Mas ele não é apenas a sombra do dito estádio, pois seu projeto arquitetônico, de autoria de Domício Pinheiro, como revela João Fernando Ferreira (no livro A construção do Pacaembu), foi constantemente alterado, ao sabor de conveniências políticas brasileiras. O Pacaembu é uma dessas páginas históricas que ficaram preservadas, a lembrar-nos do passado (pena que não vejamos isso).

Construção do Pacaembu. Pode-se ver a lendária Concha Acústica da qual meu pai tanto fala. Destruída, ela deu lugar ao Tobogã.

Para não perder o bonde da história, São Paulo deixa de lado a memória, peso morto para quem nasce hoje e é convencido de que não precisa conhecer o passado. Tantas ruas falam-nos de personagens importantes de tempos idos, ruas que gritam a ouvidos surdos. Surdos pela monumentalidade da megalópole paulista. Pela concorrência voraz e desumanizadora de hoje. Lembrar é esquecer, perder o "agora" e recordar o tempo que já não existe mais, o tempo que registrou sua passagem em pedras que foram lapidadas e ganharam formas diversas das que tinham algum significado. Felizmente, não sou o único que não quer esquecer. Uma meia dúzia de estudantes de história e historiadores também não querem. Heródoto Barbeiro também não quer.
Para não esquecer, um livro que analisa crônicas de Menotti Del Picchia, da arquiteta e urbanista Ana Cláudia Veiga de Castro, vem em socorro da memória. "A São Paulo de Menotti Del Picchia", resutado da publicação de dissertação de mestrado da autora, avalia a visão do artista que buscava retratar em crônicas jornalísticas a sua visão sobre a São Paulo que se construía Moderna. Menotti, que foi jornalista, poeta, romancista, contista, ensaísta, teatrólogo, historiador e pioneiro da indústria cinematográfica, viveu os conflitos da cidade dividida entre modernizar-se e manter-se tradicional.


O livro, fruto da publicação de dissertação de mestrado, resgata o pensamento de um dos maiores artistas do Brasil, e sua visão sobre a natureza "reconstrutora" de São Paulo

Na época de Menotti, as "transformações" já eram postas em marcha. Mas transformava-se com vistas a uma estética inovadora e que buscava (com diversos conflitos, diga-se) uma expressão nacional. Não sei se é demasiado pessimismo, mas a estética de hoje não me diz nada. Absolutamente nada. Diferente daquela que foi apagada. Um assalto à memória. À História. Ao nosso tempo, resultado dos tempos idos. Falta ao paulistano uma identidade própria. E parte dessa ausência de identidade é motivada pelo excesso de identidades que o paulistano tem de assumir para sobreviver. Recuso-me, como paulistano, a viver tantas identidades que nada me falam. Tempos escuros esses. Lembrar a São Paulo de ontem não é nostalgia. É responsabilidade. Essa que falta a todos os que desmontam o passado tentando apaga-lo, como se o futuro pudesse ser melhor se não conhecêssemos as raízes que o alimentam. Parece que, como disse Kafka, "há esperança, mas não para nós".

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