Conto: “A terra dos homens de olhos esbugalhados”

O Pajé era a figura mais importante da tribo. Em tempos difíceis, em dias de guerra, ele era consultado até o absurdo de quatro vezes em um único mês. Todos tinham respeito por ele. Ele era o chefe, diziam-no filho do Sol e da Terra. Ele podia conjugar o mal e o bem, a sombra e a claridade, a água e o fogo, tamanho era seu poder.

Sua choça ficava distante da tribo. Meio dia a cavalo. Índios iam diariamente levar para ele frutas e raízes cozidas. Era obrigação da tribo alimentá-lo. Não gostava muito de carne. Apreciava apenas um caldinho de cristas de galo, preferência culinária herdada de um padre colombiano que vivera no garimpo e fracassara em sua tentativa de catequizar a tribo. Até os garimpeiros já haviam recorrido a ele quando uma epidemia de diarréia acossou-os.

O Pajé havia conseguido a façanha de apaziguar as relações entre a tribo e o garimpo, embora volta e meia se engalfinhassem por um motivo qualquer.

Mas o Pajé, um dia, foi esquecido por todos. Mistério.


Era uma terra de homens rudes. Chegou certo dia no vilarejo o que um judeu (o único “estudado”) chamou de “Arca da Aliança” (pois fizera índios e brancos esquecerem, de vez, suas diferenças). Tratava-se de um caixote estranho, no qual nenhuma mão bruta tinha o direito de tocar. Fora levada de carroça diretamente para o bordelzinho do local.


Todos os que ficavam ao entorno dela (menos as mulheres de boa índole, pois não entravam naquele covil, e as crianças) bebiam da fonte do conhecimento do bem e do mal – mais do mal do que do bem, diga-se. Um estranho fenômeno começou a se manifestar: todos os que tinham contato com a “Arca” ficavam com os olhos esbugalhados e a boca escancarada. A princípio, pensaram ser uma terrível doença. Depois, cogitaram uma mutação genética. Por fim, pensaram que o fenômeno teria relação com os espíritos ancestrais contidos na “Arca” (descobririam mais tarde que a causa eram os constantes sustos com as “verdades” que recebiam dela).


Uma famosa universidade ficou sabendo da epidemia que tomava conta de todo o garimpo e da aldeia. Fora informada por uma horrorizada professora que, em visita ao garimpo, ouvira um cantarolar em uma língua estranha (depois identificada como um português misto de inglês) de um índio de olhos esbugalhados. A Universidade destacou um médico, um biólogo e um antropólogo (sempre útil nessas horas), para investigar o fenômeno. Dias depois, recebeu dos três uma carta. Decepção. Não era exatamente um novo fenômeno. Mas perdera os três cientistas.


O antropólogo ficou na tribo, para melhor investigar os efeitos da Arca. O médico e o biólogo ficaram vivendo em bigamia no garimpo, pois ambos se apaixonaram por uma graciosa cabocla.


Ah, sim, o Pajé! Depois de uma semana sem comida, sentindo-se desrespeitado e trocado por um caixote que fazia mais magias do que ele, mudou-se para a tribo vizinha, onde a televisão (ainda) não havia chegado!

Autor: André Canevalle Rezende

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