Memória proletária: o velho comunista


Aos 82 anos, João Pereira, ex-vereador sorocabano, relembra o passado e comenta o momento político atual

Os olhos muito limpos e vivos ainda são os mesmos dos anos de chumbo, mas o tempo lhe escasseou os cabelos, manchou a pele e encurvou as costas. Aos 82 anos, o ex-vereador sorocabano, João Pereira, continua com o cérebro afinado e lúcido, capaz de críticas agudas ao modelo político de hoje e aos políticos de agora. Logo de início, deixa clara sua posição: “Sou comunista”. Antes de ser vereador, ele foi trabalhador de indústria têxtil e visto como agitador dos meios operários. Homem de sorriso fácil, trata os assuntos políticos com uma risada sarcástica. Tanto o mensalão quanto as falcatruas e impunidade dos governos recebem dele as críticas seguidas de leves gargalhadas. Pereira observa o mundo de dentro de sua pequena sala, no bairro Barcelona, através da televisão e dos jornais. O daschund hound (cachorro “salsicha”) da família, inquieto, pula da poltrona ao chão, do chão à poltrona, late, se mexe. Chia em busca de atenção, enquanto Pereira puxa de debaixo da mesinha do telefone um calhamaço de jornais e espalha-os pela poltrona. Dali, retira elementos para construir suas críticas.

Os olhos seguem pelas manchetes, e Pereira encontra seu primeiro alvo: “Olhe o que diz aqui!”. A reportagem fala dos deputados mais ricos do Brasil: “Esses deputados têm avião particular. Aquele ali não sabe sequer quantos apartamentos possui”. Outra reportagem mostra imóveis comprados por deputados por preços incompativelmente baixos: “Esse comprou 100 mil alqueires de terras por 40 mil reais. O que são 40 mil reais para um deputado?”. Por esse valor, o parlamentar em questão comprou algo perto de 252.083 campos de futebol. Para Pereira, essa aquisição legitima a luta dos sem-terra por um pedaço de chão. “E isso é o que é publicado em jornal, e o que não é?”.

João Pereira foi eleito vereador por 3 vezes: 1968, 1972 e 1978, permanecendo na vereança sorocabana por 14 anos, em plena ditadura militar (os dois últimos mandatos tiveram 6 anos cada). Com a autoridade de quem conheceu o poder por dentro e ousou confrontá-lo, o ex-vereador não poupa críticas aos partidos políticos atuais: “Os partidos que deveriam agir contra as más condições de hoje, não agem. Alguns porque são beneficiados por ela, outros porque estão mancomunados com quem se beneficia. Alguns porque não tem força”. Críticas sobram também aos representantes do povo no Congresso: “Os deputados e senadores estão ali para nos representar, mas não representam. Eles querem garantir a riqueza deles. Essa democracia que está aí não nos serve. Queremos uma democracia do povo para o povo, ao contrário dessa”.

Pereira afirma que votou em Fernando Henrique Cardoso quando ele disputou com Lula as eleições de 1994. “Mas em 1998, 2002 e 2006 votei em Lula, e hoje ele é o melhor candidato”. Numa análise crua dos fatos, o ex-vereador conclui que a maneira “atenciosa” como Lula age com a classe empresarial é necessária, principalmente porque não tem apoio no legislativo e no judiciário: “Lula precisa ceder para conseguir governar, pois lhe falta apoio; na área social, ele faz o que pode, já que precisa trabalhar numa sociedade capitalista com critérios capitalistas”. Para o ex-vereador, Lula faz um bom governo (e cita, inclusive, a maior inserção do Brasil na economia mundial). Entretanto, crítico do capitalismo, para Pereira esse modelo se reduz a uma lógica simples: quanto pior, melhor. “Basta ver os grandes países, com suas economias montadas em indústrias bélicas; em paises como o Brasil, existem as empresas internacionais de capital especulativo, que transferem seu capital para outro país quando o rendimento delas diminui”.

“A ditadura agia assim: prendia, seqüestrava,
torturava e matava, para depois julgar. E geralmente
absolvia por falta de provas. Eu fui absolvido”

O sonho revolucionário de Pereira continua: “Vivemos um estado opressor, que dilapida o cidadão e não o leva em conta. Não lhe dá saúde, educação ou lazer. A maioria da população está marginalizada, e isso cria um estado propício e revolucionário, prestes a explodir”.

Pereira mostra-se irritado somente quando o assunto é a economia dos governos militares: “Eram governos entreguistas”, sentencia. Sequer os escândalos políticos, mensalão, vampiros ou sanguessugas lhe abalam: “A direita fazia a mesma coisa. Desafio qualquer um a dizer de onde veio o dinheiro com que FHC comprou sua reeleição”. Mas uma coisa deixa Pereira abatido: a idade não o permite mais participar ativamente da vida política da cidade.

Nos tempos da vereança

A cena política vivida hoje no Brasil é bem diferente daquela de quando Pereira foi vereador. A ditadura militar (1964 a 1985) instaurou o bipartidarismo. Dos antigos partidos, sobraram apenas a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), dos militares, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), oposição ao regime. O PCB (Partido Comunista Brasileiro, ao qual Pereira pertencia) vivia na clandestinidade, mas seus representantes eram eleitos sob a bandeira emedebista, ou, quando infiltrados, sob a legenda da ARENA. Eleito pelo MDB, Pereira conta que, em 1968, foram eleitos quatro vereadores comunistas em Sorocaba, enquanto a ARENA contava com 17 representantes: “Na câmara, nós ganhávamos no debate, mas nos votos eles venciam”.

“João Pereira foi vereador muito atuante, não só na palavra, mas também na ação, e homem a quem Sorocaba deve muito. Em um tempo sombrio, quando muitos se acovardavam e sumiam da cena política, enquanto outros vereadores se omitiam, ele foi ativo e combativo”. Essas são palavras do professor Aldo Vannuchi. Ele conta que teve contato com Pereira em dois momentos principais: quando Pereira pediu e apoiou na Câmara a criação da “Praça Alexandre Vannuchi Leme”, (inaugurada em 7 outubro de 1978, situada na confluência da rua Amazonas com a avenida Afonso Vergueiro), e na luta do movimento pró-anistia em Sorocaba, no ano de 1979 (o movimento saiu vitorioso após a Lei da anistia). Por sua proximidade com o movimento operário na cidade, Aldo Vannuchi também teve momentos de conflito com a ditadura militar. Alexandre Vannuchi Leme, estudante de geologia e sobrinho de Aldo, foi parar nos porões do DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operação e Defesa Interna), e ali acabou assassinado. Morreu aos 22 anos, em 1973, considerado subversivo pela ditadura por sua atuação no movimento estudantil.

1968: torturado

O ano de 1968 estará registrado para sempre na memória de João Pereira. Opositor da ditadura, o vereador foi levado ao DOI-CODI para prestar esclarecimentos, e ali conheceu a tortura. Ao falar sobre o assunto, a entrevista se torna tensa. Pereira mantém os olhos fincados no vazio de sua sala enquanto um lapso de memória precede o momento do desabafo: “Passamos por um processo de constrangimento, de tortura de todo tipo, física, ideológica, lavagem cerebral. Cada político tinha uma receita para ser torturado. Pau-de-arara, cadeira do dragão, crucifixo. Levei choque da unha do dedão ao fio de cabelo”. A prisão durou 11 dias, e Pereira perdeu parte da audição. “A ditadura agia assim: prendia, seqüestrava, torturava e matava, para depois julgar. E geralmente absolvia por falta de provas. Eu fui absolvido”.

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