Memória viva de prédio morto

Ademar alugou um apartamento no Bairro das Laranjeiras. Ele é escritor. Sofre. No meio da madrugada, ele está diante de sua Olivetti. Coça a cabeça. Ajeita os óculos. Bebe. Levanta. Anda pelo apartamento. Volta, senta. Nada. Não sabe o que escrever, como escrever, sobre quem escrever. Está desesperado.

Os raios do dia logo chegarão, e ele não terá preenchido uma única lauda de texto. O cálice de vinho está vazio ao seu lado, como as páginas que deveriam estar cheias. Mas nada. Vai até a janela, olha para fora. Que belo lugar arranjei para morar! – pensa. Uma idéia lhe surge na mente. Ainda é um embrião, mas já é alguma coisa. Ademar corre para a máquina e começa a bater:


Colocou-se nas pontas dos pés e esticou o pescoço. Olhou. Do outro lado só havia um esqueleto de prédio, resumido a uma laje enegrecida pelas chuvas e fuligem dos escapamentos dos carros. O alicerce, que outrora expulsou toneladas de terra e mato daquele local, estava coberto pelo mato como um morto coberto pela terra, e com tecos de concreto faltando. Foi amputado antes do nascimento, degolado antes da mocidade, assassinado pelo ódio. Das pontas das colunas cresciam ferros e vergalhões e, na ponta deles, linhas e esqueletos de pipas agonizavam enroscados.

O terreno baldio estava incrustado bem no meio de um bairro em ascensão e despertava interesse imobiliário. Sua área útil era de uns 3 campos de futebol. Os vizinhos queriam aquele hiato arquitetônico tampado por uma construção. Qualquer construção, desde que livrasse o quarteirão daquele esqueleto cinzento que os muros já não escondiam mais, agora que os prédios ao redor se erguiam muito altos. Aquele mesmo hiato arquitetônico era o último resquício de memória que havia dos tempos idos. Sequer existiam fotos do bairro de 30 anos atrás. As Laranjeiras foram muito diferentes do que se vê hoje por lá.

Eduardo estava em pé sobre um tambor corroído pela ferrugem. Tentava ver o que havia do outro lado do muro; talvez constatar ou destruir os mitos que se haviam erguido sobre os alicerces abandonados antes mesmo que a construção tomasse fôlego. E mitos ali não faltavam. Seus pés precisavam ser leves como plumas, pois o tambor enferrujado não suportaria o peso de alguém sobre ele. Era também resquício do período de construção do prédio, mas ficou para fora das oito paredes que cercavam, misteriosamente sem portão de entrada, aquele terreno.

- O que tem aí, Dú?

- Fala logo, pô!

- Calma gente, não alcanço! Peraí.

- Vai logo, antes que alguém chegue. Vai!

- Calma, calma. Tem caco de vidro aqui encima. Não dá, não dá.

- Tem que dar cara, vai!

- Tá com medo, maricas?

- Ele tá com medo, ó!

- Não estou não!

- Está sim!

- Por quê você não vem aqui então?

- Maricas, maricas, maricas. Não faz xixi, heim! Medroso!

- Calaboca! calaboca!

Eduardo fez um esforço descomunal. Com as mãos sendo rasgadas pelos cacos de vidro, ele se dependurou na crista do muro e tentou erguer seu corpo. Escorregou e rasgou o joelho na parede chapiscada. Tingiu um pedaço do muro de vermelho. O sangue se confundia com as outras pichações, e dava um ar macabro a um desenho: botava um risco vermelho cortando a testa de um skatista.

Os garotos estavam ansiosos em descobrir o que aqueles muros escondiam. Eles sabiam que uma construtora viria destruir tudo, e os mistérios que por décadas assaltaram a imaginação das pessoas e a fé dos religiosos seriam engolidos pela poeira. Precisavam descobrir o que havia do outro lado nos mínimos detalhes.

Não fazer questionamentos sobre o passado fazia parte da cartilha de conduta dos moradores do bairro, embora extra-oficialmente os mitos eram despejados nos ouvidos de quem quisesse ouvir. E todos queriam.

O bairro não goza da fama de fantasmagórico, e nem há motivos para se acreditar em tamanhas tolices. Ninguém jamais viu fantasma, ou disse ver. Tampouco haviam gemidos, uivos e coisas do tipo que eriçam os pêlos dos mais crédulos. Mas aquela construção... Havia parado (para todos os efeitos) sem explicação lógica.

Eduardo conseguiu subir no muro, e começou a descrever o que via:

- Tem um prédio em ruínas, tem muito mato, e tem mais mato do outro lado. Parece que lá no fundo tem um laguinho; não, é água empoçada da chuva. Debaixo de um monte de concreto (a laje) tem alguma coisa, mas não consigo ver.

Eduardo tem dez anos. Os outros também. Seus pais os proibiram terminantemente de se aproximarem do terreno, que logo receberia as máquinas da construtora. Edu esticou o pescoço, mais, mais, mais. Caiu lá dentro.

- Edu, Edu!!! – gritavam todos.

- Ele não responde. Será que quebrou o pescoço?

- Pára com isso!

- Edu!!!

- Vamos chamar o pai dele.

- Tá maluco!

Os garotos se foram, e Eduardo ficou sozinho.

O muro se erguia quatro metros do chão. O tombo foi forte. Edu não morreu. A noite caiu, e ele continuou desacordado. Seus amigos nada disseram a ninguém sobre o acontecido da manhã. Os pais de Eduardo ficaram loucos de preocupação, acionaram a polícia, mas ela nada faria antes de 24hs de desaparecimento. Não ocorreu a ninguém a possibilidade de Eduardo estar no terreno baldio. Seus amigos disseram que não viam Eduardo desde cedo. Os pais procuravam o garoto desde as 18hs. Já eram 22.

O que ocorreu com Eduardo durante esse tempo foi algo estranho. Perambulou desacordado por todo o terreno, tendo recordações de momentos que jamais viveu. A cada passo, ele afundava os pés até a canela. O chão do terreno não era duro. Ao contrário, era macio e encharcado (uma das explicações para a construção ter parado seria a instabilidade do terreno). O único ponto duro daquele chão era sob a laje e sobre a laje.

Eduardo estancou frente ao escombro. Ficou parado lá, com os olhos fixos em nada, pendendo, meio mortos, até que foi para debaixo da laje, que se estendia por mais de 300 metros quadrados. Sentou-se ao lado de um esqueleto. Sabia que era um esqueleto, mas não sentia medo. Ao contrário, estava solidário com aquele defunto. Aliás, eram dois esqueletos: o de um homem, e de um cão. Ambos enegrecidos pelo tempo, esverdeados pelos musgos que cresciam com vitalidade, como que debochando dos cadáveres. As órbitas do humano estavam entupidas de musgos. O verde tomou conta do espaço que antes era do azul. O cão tem as órbitas secas, sem vida alguma.

Edu, hipnotizado, recebe as confissões da memória dos escombros. Eles viram muita coisa durante os anos. A história ressurge agora, viva, pulsante, como moribundo que recebe milagre divino e volta à vida. Os anos não apagaram os acontecimento, que se repetiam incessantemente no tempo daqueles escombros.

Os olhos de Edu vêem o passado. E ele não é belo. Mas poderia ter sido. Passa-se o tempo em que o escombro é um local vivo, em construção, e que abrigaria o casal Caldino e Gília. Eles nasceram um para o outro, mas uma intriga os fez se separarem. A irmã de Gília era a responsável pela briga.

Todo aquele local era tomado por matas. Quase nenhuma casa por perto. Morros que tombaram à força das máquinas ainda estavam lá. Longe, num boteco, Caldino engolia doses cavalares de bebida. Tinha o ombro esquerdo afagado pela solidão; o direito, pela morte. Bebeu mais. Secou a garrafa.

- Garçom! Mais uma dose! – os olhos de Caldino pendiam inertes.

- Garçom, tá me ouvindo? Trás mais, pô!

O garçom se aproximou.

- Senhor, o senhor já bebeu o bastante...

- Cala a boca. Eu to pagando. Põe mais aí. Derrama mais, cara. Enche até a borda, isso, assim. – Caldino derramou o conteúdo na garganta.

- Mais!

- Senhor...

- Cala a boca, cara! – e bateu no bolso da camisa – eu tenho dinheiro! Se quiser, compro a tua mãe, cara!

O garçom insultado largou a garrafa e foi para trás do balcão, antes que acabasse matando aquele morto-vivo.

- Ah! Gília, por quê? Cadê você, princesa? Onde você está?

Lembrou-se das aulas de literatura. Enfiou a mão no bolso, e puxou um maço de notas com papéis e documento. Depositou, hesitante, tudo aquilo sobre a mesa.

- Espere por mim, Gília, minha Dulcinéia. Vou resgatá-la, princesa.

Caldino tomou a estradinha que levava para a casa em construção. Trôpego, saiu berrando, passo para trás, passo para frente:

- Vocês me querem morto seus vagabundos, querem? Peguem-me então. Venham, palhaços! – E sumiu escuridão adentro. Queriam-no morto, sim. Por inveja, por ciúme, por ódio. Todos o queriam. O vigário jamais fez nada para impedir as tentativas de assassinato. Por quê? Isso os escombros contavam para Edu. A história de Caldino e de tantos outros mais; a rede de intrigas que, de certa forma, incriminava a todos de Laranjeiras.

De manhã, as máquinas da construtora chegaram e derrubaram parte do muro. Edu foi encontrado sobre a laje; olhar distante; sem reflexos. Foi levado para o hospital. Ainda esperam sua recuperação. Ele não fala, não reage, não sente.

Os martelos das máquinas derrubavam os escombros. Os esqueletos foram soterrados para sempre ali. A história daquele local estava definitivamente apagada. Mas alguém sabe. Edu sabe de tudo.


Ponto final. Texto pronto! Ademar está exultante.


O cemitério de lembranças não cobrou nada de seus defuntos, e os escombros sob o prédio de Ademar continuam contando sua história para quem quiser ouvir. Ainda que em forma de inspiração. Basta fechar os olhos e abrir a mente.

Comentários

Anônimo disse…
Sim, provavelmente por isso e