Uma passeio pelo mundo do trabalho

As diversas expressões do trabalhador urbano

Do lado de fora se levantam imponentes edifícios de concreto. Uma "selva de pedras", como alguns gostam de metaforizar. Dentro do apartamento, dúzias de retratos de Roberto Carlos, livros sobre o Rei, biografias em revistas do maior cantor da Jovem Guarda. Diante do computador, Sávia Cindi, estudante de jornalismo desempregada, escuta "Nando Reis" enquanto conversamos. Ela veio de Teresina (Piauí) com o pai, que foi transferido da empresa de lá para a filial de São Paulo há dez anos. No caminho, conheceu São Luis do Maranhão e Rio Grande do Sul. O repórter recebe uma cachoeira de adjetivos quando pergunta como é o dia de um desempregado: "É terrível, triste, solitário. É impaciente, é chato, depressivo. Só sei que não agüento mais", desabafa, meio sem-graça.


São Paulo, São Luis, Sorocaba. Grandes cidades com diversos pontos em comum. Entre eles, a existência de um exército de trabalhadores. Trabalhadores urbanos. Garis, balconistas, policiais, taxistas, motoboys, ambulantes. E, claro, desempregados.


A cidade "fala" por meio de seus trabalhadores. Como observador, é fácil ouvi-la. É só aguçar os ouvidos e seguir os atores.


Segurando firme sua pequena bandeja cheia de jujubas, o vendedor ambulante apressa o passo em direção a um senhor bem vestido e de cabelos arrumados. Com seu trote curto e rápido, o ambulante se emparelha ao possível comprador e, sutilmente, oferece sua mercadoria:


"O senhor quer uma gominha?", pergunta. O homem bem vestido não dá atenção. Mas o vendedor não desiste: "Uma gominha!?". O cliente responde, seco e sem jeito, à oferta daquele carequinha inoportuno que o atrasa: "Já comi muita goma nessa minha vida!", e se vai. O vendedor lança seus olhos à cata de outro possível comprador. E se dirige a uma senhora, que lhe dá mais atenção. Terá sorte dessa vez?


Mais à frente, um grupo de pessoas está sentado em um banco da Praça da Matriz, no centro de Sorocaba. No meio do grupo, à sombra de uma árvore e cercado por alguns senhores mais jovens, um aposentado revive o passado. Trabalhar já não é mais sua preocupação. Uma gorda e dura semente se desprende da árvore e passa a menos de 20 centímetros da sua calva. Com o dedo em riste, ele diz: "Cai pra lá. Quase me acerta. E vê se faz menos barulho!". A semente parece indiferente ao eloqüente protesto.


Logo à frente, na rua Francisco Scarpa, vendedores procuram chamar a atenção dos clientes para suas lojas. "O senhor estaria interessado em sapatos?", pergunta uma jovem vendedora. "O moço não quer comprar roupa? Estamos em oferta", diz outra. E assim segue, mais dez, quinze vezes rua abaixo.


Muito menos discreto que o vendedor de jujubas é o comprador de ouro. Ele obtém êxito em fazer sua voz vencer o barulho de carros e a falação da multidão. Numa cadência impecável, repete por horas a oferta: "Compramos ouro! Gargantilhas, pulseiras, anéis e brincos! Pagamos à vista! Orçamento sem compromisso!". A musicalidade da voz ao fazer a oferta ele adquiriu durante o longo tempo que dura o que deveria ser um breve "bico". A 200 metros dali, está a avenida Afonso Vergueiro.


Na Praça da Bandeira, uma "invisível" gari junta para cima da pá a sujeira que os pedestres e passageiros jogaram no chão. Indiferente à presença do repórter, ela segue seu trabalho: recolher o lixo de quem insiste em não ter tempo de encontrar uma lixeira.


De volta ao centro, um palhaço contratado por uma loja de eletro-eletrônicos faz propaganda. Conversa com um mendigo, que se retorce em caretas impacientes. Pedestres apressam o passo, para evitar "cair nas garras" daquela figura bizarra. Um olhar de relance mostra que por trás da maquiagem está um senhor de uns 50 anos de idade. Dez passos à frente, quem voltou a cabeça não viu mais nem palhaço nem mendigo. Sumiram!


Nesse momento, dois esbaforidos policiais sobem a Francisco Scarpa de bicicleta. Param no cruzamento, a espera do sinal fechar. Antes que isso ocorra, porém, aproveitam um grande espaço que separa dois carros e avançam em direção à Praça da Matriz. Enquanto os policiais sobem, dois trabalhadores pintam a fachada de um prédio. Um, em cima, senta na beira do edifício. Outro se mantém suspenso por cordas. Frente à curiosidade do repórter, um senhor comenta: "Já trabalhei na Eletropaulo. Eu subia em escadas bem altas. Mas para se pendurar em cordas tem que ser muito macho. E dá um dinheirão, viu? Nunca tive coragem".


Na farmácia, funcionários em verdadeiro frenesi tentam atender à multidão de compradores. "Ai, Jesus!", exclama uma aposentada, ao ver a longa fila. "A senhora pode ir ali para a fila. É rapidinho", pede o atarantado atendente.


No Hospital Regional, a mesma agitação. "É uma loucura", diz um estagiário auxiliar de enfermagem. "É um entra-e-sai! O pior é a área de politraumas, para onde vão os casos mais graves. Outro dia recebemos quatro pessoas baleadas. Me lambuzei todo ao tratá-las. Falta medicamento. Faltam enfermeiros e médicos. Falta maca. Falta tudo", reclama. "Pacientes passam dias sendo tratados pelos corredores", revela.


O sol se vai, e os gritos da cidade cedem lugar aos sussurros da noite. O cansaço do dia de trabalho é denunciado pelo cochilo do último taxista da rua Santa Cruz.


Às duas da madrugada, um mendigo se encosta num banco do Terminal Rodoviário, próximo a guarita policial. Carrega uma sacola cheia de latinhas para vender por quilo. Acredita que ali sua "renda" estará segura. Uma mulher e uma criança são levadas, apesar de seus protestos, ao assistente social. O policial sai da guarita e faz uma ronda nas imediações da rodoviária. Antes de se afastar, diz ao repórter: "Pode ficar tranqüilo, ninguém vai mexer aqui".


O mendigo dorme. A noite segue.


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