Poeta transgressor

Ele vinha rabiscando rapidamente páginas e páginas de caderno. Deixava versos magníficos por onde passava seu lápis, como pegadas de vida em solo maldito. Está quase concluída sua obra. É a mais bela obra jamais escrita em versos por mão humana. Trata, justamente, da mão humana, a mesma utilizada para talhar nosso destino em mármore cinza, que depois se transformará em nossa própria lápide. Era o poema da transgressão humana. Releu alguns versos. As palavras insistiam em não dizer tudo o que ele queria. Seu peito apertou-se. Sentiu o sangue subir à cabeça. Tomou um cálice de gim, e repousou, sonolenta, a mão sobre o joelho. Está quase pronto! Falta pouco! Muito pouco! Releu mais versos. Encontrou uma frase que soava estranha, como não cabendo naquele contexto. E agora? Apagá-la? Mas ele é o poeta da transgressão humana, e não é exatamente isso que a frase está fazendo, transgredindo? Suplantando a capacidade do Seu senhor em transgredir? Sim, é! Mas ela não pode continuar lá! É absurdo. Colocará toda a obra a perder. Arrancá-la de lá?! O poeta se vê escrito naquela frase. Sente-se, como ela, um intruso no meio da multidão. Não pode arrancar a frase. É como arrancar a si próprio do mundo. Mas não é isso o que ele está fazendo agora? Então consertá-la...Transformá-la em parte harmônica, fazê-la encaixar-se com graça e perfeição naquele contexto. A obra estará salva. Mas e o poeta? E a transgressão cantada em sua obra? É impossível remediar o transgressor. Somente a morte pode fazer isso. Mexer na frase é assassinar a transgressão da obra. “A frase deve permanecer”, grita o conjunto. E lá ela fica. Mas o poeta da transgressão é exigente, e não aceita tão brutal erro. Rega a goela, esturricada, com mais gim. A mistura é forte, o gosto insuportável. Mas ele bebe. É assim que ele se sente no mundo... Preso, humilhado, perdido. Como sua frase. Enfurecido, joga o caderno no fogo da lareira. Dá a última golada no gim envenenado, e fica sentado na frente da janela que dá para o nada, com a boca esquecida aberta, esperando o Sol vir encontrar seu corpo sem vida.

Conto originalmente publicado na Revista Malagueta

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