"Khadji Murat" e o brilho de Tolstoi

Poucas histórias me deram uma sensação tão forte de soco no estômago quanto "Khadji Murat", de Leo Tolstoi. Mais precisamente o capítulo xxiv, quando meu bom estômago quase me fez curvar. Uma narrativa impressionante, ricamente detalhada, onde até o mais insignificante personagem, como um cocheiro que aparece uma vez só e abrindo uma porta, ganha nome.

Trata-se de uma obra a tal ponto gloriosa que sopra ares de poema épico. "Khadji Murat", nome da novela e do personagem principal, passe-se no Cáucaso, onde Tolstoi serviu em um regimento de linha, após formar-se na Universidade de Kazan. A história é ambientada nessa região, em fins de 1851.

No romance de Tolstoi, não há herói ou vilão. Todos parecem igualmente culpados e igualmente inocentes, enquanto Murat trava sua batalha contra sua própria natureza e seu grande dilema: aliar-se aos russos para libertar sua família, ou voltar para junto do detestável Schamil, que mantém refém sua mulher, mãe e seu amado filho Iussuf? Ao aliar-se aos russos, Murat volta-se contra os tchetchenos, ao lado de quem luta, embora sob o domínio de Schamil. Se alia-se a Schamil, Murat volta-se contra os também odiosos russos, e será assassinado por Schamil, que vê nele um perigo para a posição que ocupa.

Transtornado pela falta de ação dos russos, a quem se entrega em troca de ajuda para libertar sua família do poder de seu maior inimigo, Murat e seu grupo de murides partem para uma ação desesperada, que determinará o fim da novela, precisamente no capítulo xxiv, o penúltimo.

Em momento algum Tolstoi recorre a divagações e sentimentalismos. Aliás, quando é necessário centrar a atenção em um personagem de pouco valor, Tolstoi o faz tão intensamente que a abordagem ganha ares de importância imprevista.

Um desses momentos é quando o Imperador Nicolau Pavlovitch entra no emaranhado de relações que determinam o futuro de Murat. Mesmo não sendo peça fundamental da história, aliás desenvolvendo papel pouco importante, o Imperador é impecavelmente retratado por Tolstoi, que faz um desenho contornado e bem definido dessa figura tão irresponsável quanto patética. Outro momento inesquecível é o retrato do caráter de Vorontzov. Em poucas linhas, esse personagem tem suas entranhas, mesquinharias e fraquezas esmiuçadas e postas à mostra.

Enfim, uma novela magistral e retrato magnífico de um período de guerras em uma terra de constantes indefinições territoriais e massacres étnicos, que quase se transformam em esporte e passa-tempo. Uma história à altura do gênio de Toltoi, autor de Guerra e Paz, Ana Karenina, Narrativas de Sebastopol, Os Cossacos, entre outros clássicos da literatura universal. Um momento de grande brilho literário e lucidez impecável.

Li esse romance em uma impressão bastante antiga, daquelas que ninguém encontra mais, nem em sebos de primeira linha. Trata-se de um livro contendo 3 novelas russas, aliás esse é o nome do tomo, acompanhado de mais 19 tomos que ando devorando ultimamente. É a coleção "Grandes Romances Universais", da W.M. Jackson Inc. Editores, um resgate de obras impagáveis de grandes gênios da literatura mundial. Títulos dos quais quase nos esquecemos, tamanha a quantidade de "novas obras fundamentais" que lançam todo ano. Algumas nem tão fundamentais assim, mas dessa forma apresentadas ao público.

Posteriormente volto a comentar a magnífica obra de Tolstoi, escritor que obviamente dispensa comentários. Mas Khadji Murat é novela a ser digerida aos poucos, como idéias que nascem passo após passo, que não vêm todas de uma só vez. Trata-se de uma leitura em construção.

Comentários

Milu disse…
Fiquei super feliz ao me deparar com este post, que faz jus à genialidade de Tolstoi. Realmente, Khadji Murat é uma obra prima, escrita por volta de 1905 e que o próprio Tolstoi julgava não concluída. Este livro serve para mostrar aos que acham que por esta época o autor havia sido atacado por uma "demência senil" que isto nunca aconteceu e que ele era e foi até sua morte o mesmo titã de sempre, mesmo mudando os temas de seus livros, mesmo com crises existenciais, ele nunca deixou de ser um dos dois maiores gênios criativos da humanidade, ao lado de Dostoievski.
Aproveito a oportunidade, André, para te parabenizar pelo blog e sua política: tudo pode ser copiado, exigindo apenas a citação da fonte. É isto aí, saber compartilhar o conhecimento é uma das maiores qualidades na era cibernética. Parabéns e sucesso a este blog que já está nos meus favoritos.
Milu Duarte