O ex-homem

Ela criava com o pensamento e a última coisa que criara fora um coelho branco. Fiquei intrigado tentando imaginar o que passava em sua cabeça. Talvez um desejo sexual reprimido. Coelhos procriam rapidamente, e "botam ovos de chocolate". Talvez aquilo fosse uma mistura banal do seu inconsciente.

Enquanto ela se divertia com animaizinhos inocentes, eu me sentia reconfortado. Não corria riscos, como seu único e carnal homem. Ao lado dela eu estava havia anos, suportando suas esquisitices, seus sentimentos de culpa, suas liberdades inconsequentes e, muitas vezes, perniciosas.

Em pouco tempo (muito menos do que eu imaginava), ela se esquecera do coelho que, aos poucos, foi se apagando até desaparecer. Não sei se sofreu ou não. Só sei que foi empalidecendo, perdendo a textura, até sumir, como uma baforada de fumaça se esvais rapidamente.

Eu ficava olhando ela brincar com pensamentos, mas jamais imaginar outro homem. Até que o inevitável aconteceu e a mulher que brincava como menina desabrochou para desejos mais intensos. Homens foram sendo criados e desaparecendo, como todo o resto.

Por um grande amor, que não sei de onde vinha, eu suportava aquela profusão de imaginações, novos homens entrando e saindo de sua vida. Mas o que importava, se eu era carnal? Imaginações se perdem, se esquecem, se esvaem. Eu permanecia, e vivia o ciúme na carne.

Nós brincávamos, nos divertíamos, íamos a restaurantes e casas de shows. Ela adorava, falava banalidades e às vezes coisas sem sentido. Algo típico de almas livres, frescas, como flores ao sabor das brisas em manhãs orvalhadas.

Um dia, me dei conta de que não me lembrava da minha infância, adolescência. Vivendo sempre em função dela e de seus desejos, não sabia onde trabalhava, quem eram meus parentes. Quem era eu? E foi nesse momento que nasceu a angústia, nasceu o medo, nasceu a consciência, comecei a empalidecer. E eu sumi.

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